Uma pergunta feita por católicos e evangélicos.
Para nós, espíritas, esta questão pode parecer desnecessária. Damos, como evidente por si mesmo, o fato de que o Espiritismo é uma doutrina cristã, já que em suas bases estão os ensinamentos morais de Jesus. Mas, esta dúvida surge para muitos católicos e evangélicos, quando buscam compreender as diferenças entre sua forma de crer e a nossa.
De fato, lhes parece estranho nosso posicionamento, pois há todo um conjunto de ideias que não compartilhamos com outras correntes do Cristianismo contemporâneo. Não compartilhamos, por exemplo, da crença no pecado original e nem nas penas eternas. Da mesma forma, temos interpretações diferentes da natureza do Cristo[1] e dos objetivos de sua missão na Terra. Por esta razão, há Padres e Pastores que respondem negativamente a esta questão, quando lhes é feita.
Está a nossa resposta errada ou a deles? Como em outras questões deste tipo, abstraindo-se eventuais motivos alheios ao campo filosófico, o problema não é a resposta, mas a formulação da pergunta. De fato, para responder se o Espiritismo é Cristão, é necessário primeiro chegar a um acordo com o interlocutor do que é ser Cristão. Esta palavra carrega dois milênios de interpretações e ressignificações.
Durante o período em que Jesus viveu e nos primeiros anos após sua crucificação, esta designação não existia. Foram os moradores de Antioquia que a criaram, para designar as pessoas convertidas por Paulo e Barnabé aos ensinamentos do Jesus Cristo[2].
Estes ensinamentos eram constituídos pelas palavras de Jesus e pelos eventos de sua vida, crucificação e ressurreição. Não eram apenas os 12 Apóstolos que as pregavam, outros seguidores de Jesus, testemunhas oculares dos acontecimentos, também os relatavam e transmitiam suas impressões pessoais dos mesmos.
Não existia então, a obrigação de aderir à formulações teológicas mais elaboradas, nem estas tinham sido desenvolvidas. Nos Atos dos Apóstolos[3], por exemplo, há o registro de seguidores de Jesus que mantinham a estrita observância da lei mosaica e das discussões sobre a exigência ou não desta observância para os novos convertidos.
De fato, até o final da antiguidade tardia, várias correntes de pensamento coexistiram dentro do Cristianismo, nem sempre de forma pacífica. O Concílio de Nicéia (325 DC), convocado pelo Imperador Constantino, foi uma das tentativas de resolver divergências existentes na comunidade cristã e chegar a uma declaração de fé comum.
A corrente que se tornou majoritária no Ocidente, nascida a partir das tradições mantidas pela comunidade cristã de Roma sobre os ensinamentos dos apóstolos Pedro e Paulo, deu forma a Igreja Católica[4] Apostólica Romana. Ela sobreviveu à crise final do Império Romano do Ocidente e contribuiu para o nascimento da civilização ocidental, moldando e sendo moldada no processo. As correntes minoritárias não sobreviveram e delas temos notícias apenas através dos raros textos que chegaram até nós, seus e dos que as combateram como heresias.
Foi no processo de diferenciar-se das heresias[5] que a teologia Católica foi se formando. Inclusive, mesmo Padres da Igreja, como Orígenes, se viram na situação de serem considerados heréticos a seu turno, a medida que os dogmas foram tomando forma. A divindade do Cristo, as penas eternas, o pecado original e muitas outras posições surgiram desta maneira.
Durante a Idade Média houve uma relativa unidade do Cristianismo, mesmo considerando-se as divergências entre a Igreja Católica Apostólica Romana, preponderante nos reinos bárbaros sucessores do Império Romano do Ocidente e a Igreja Ortodoxa Grega que tomou forma na parte remanescente do Império Romano do Oriente (Império Bizantino).
As heresias que surgiram no Ocidente neste período foram duramente combatidas antes que pudessem comprometer seriamente esta unidade. Uma das heresias mais célebres foi a dos Cátaros, combatida com uma cruzada convocada pelo Papa Inocêncio III no ano de 1208.
Foi somente no alvorecer da Idade Moderna, com as transformações na cultura e na sociedade, principalmente o renovado interesse pela antiguidade greco-romana e a invenção da imprensa, que o questionamento religioso retornou com vigor. A Reforma Protestante e a Contra-Reforma Católica são deste período.
O questionamento fragmentou o Cristianismo Ocidental e seus efeitos continuam até os nossos dias, como comprovam as novas denominações evangélicas que continuam a surgir e as reinterpretações de temas controversos nos meios católicos. O Cristão contemporâneo pode escolher uma dentre várias formas existentes de crer na Revelação Divina.
Foi também este questionamento que intensificou o interesse nos Estados Unidos e na Europa do século XIX, por um conjunto de fenômenos novos, que pareciam desafiar as leis conhecidas da natureza e as certezas religiosas. Da pesquisa destes fenômenos, nasceram o Espiritualismo Moderno e o Espiritismo.
Em ambos os lados do Atlântico, os resultados das pesquisas apontaram que delas decorriam consequências morais e que o modo de vida mais condizente com tais consequências era a vivência dos ensinamentos contidos nos Evangelhos. Também, destas pesquisas e estudos, surgiu a constatação de que nenhum dos fatos descobertos contradizia as palavras ditas por Jesus, pelo contrário ofereciam novas e consistentes explicações delas.
Por outro lado, estas mesmas pesquisas e estudos mostraram resultados incompatíveis com posições teológicas agregadas posteriormente aos tempos de Jesus. Por exemplo, a verificação experimental da reencarnação exclui necessariamente as penas eternas e o fato do Espírito evoluir gradativamente torna sem sentido o pecado original.
Enfim, retomando a questão original em nova formulação:
- O Espiritismo segue os ensinamentos de Jesus que constam dos Evangelhos? Sim.
- O Espiritismo adota o credo de Nicéia[6]? Não.
- O Espiritismo é Católico Apostólico Romano? Não.
- É uma Igreja Reformada? Não.
- É ligado as denominações Evangélicas? Também, não.
São alguns dos significados diferentes que “Cristão” foi acumulando ao longo da história. O “Espiritismo Cristão” liga-se ao significado primitivo e não aos mais tardios.
Muita Paz,
Carlos A. I. Bernardo
Observações
[1] [A palavra] “Cristo” vem da tradução grega do termo hebraico “Messias”, que quer dizer “ungido”. Só se torna o nome próprio de Jesus porque este leva à perfeição a missão divina que significa. Com efeito, em Israel eram ungidos em nome de Deus os que lhe eram consagrados para uma missão vinda dele. Era o caso dos reis, dos sacerdotes e, em raras ocasiões dos profetas. Esse devia ser por excelência o caso do Messias que Deus enviaria para instaurar definitivamente seu reino. [Catecismo da Igreja Católica, 2000]
[2] As pregações de Paulo e Barnabé em Antioquia ocorreram entre 41 DC e 44 DC.
[3] Atos 15.1 – 15.35
[4] A palavra “católico” vem do latim “catholicus” e significa universal, indicando assim sua posição majoritária no âmbito do Império Romano tardio.
[5] O significado original da palavra heresia (grego αἵρεσις, “escolha” ou “opção”) era a adoção de uma forma de pensamento diferente daquela considerada padrão.
[6] Declaração de fé estabelecida no Concílio de Nicéia (325 DC): Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão nos Céus e as que estão na Terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo. E a quantos dizem: “Ele era quando não era”, e “Antes de nascer ele não era”, ou que “foi feito do não existente”, bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência”, ou “feito”, ou “mutável”, ou “alterável” a todos estes a Igreja Católica e Apostólica anatemiza. [BETTENSON, 1998]
Bibliografia
Bauckham, Richard. Jesus e as testemunhas oculares – Os Evangelhos como testemunhos de testemunhas oculares. Tradução de Paulo Ferreira Valério. São Paulo: Paulus, 2011.
Bettenson, Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste/Simpósio, 1998.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000.
Blainey, Geofrey. Uma Breve História do Cristianismo. 1 ed. São Paulo: Editora Fundamento Educacional Ltda., 2012.
Catecismo da Igreja Católica – Edição Típica Vaticana. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
Denis, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Tradução de Leopoldo Cirne. 6 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1971.
Doyle, Arthur Conan. The History of Spiritualism (Complete). EUA: The Echo Library, 2006.
Ehrman, Bart D. Evangelhos Perdidos – As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não chegamos a conhecer. Tradução de Eliziane Andrade Paiva. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Ferreira, António Gomes. Dicionário de Latim-Português. Portugal: Editora Porto, 1991.
Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo – Vol. X da Coleção da Obras Completas de Allan Kardec. Tradução de J. Herculano Pires. São Paulo: Edicel, 1968.
Leonard, Tood Jay. Talking to the other side: A History of Modern Spiritualism and Mediumship. EUA: iUniverse, 2005.
Piñero, Antonio. O outro Jesus segundo os evangelhos apócrifos. Tradução Silvia Rojo Santamaria. São Paulo: Mercuryo, 2002.
Rubenstein, Richard E. Quando Jesus se tornou Deus – A luta Épica sobre a Divindade de Cristo nos últimos dias de Roma. Tradução de Marija C. Mendes. Rio de Janeiro: Fisus, 2001.
Suffert, Georges. Tu és Pedro – A História dos 20 primeiros séculos da Igreja. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
Vieira, Valdomiro. Jesus e o Espiritismo. São Paulo: V. Vieira, 2000.