Um Conto Espírita (IV)
Sinhô Doutor era assim chamado por ser o único advogado que morava nas redondezas, muito requisitado nas questões jurídicas que surgissem naquele recanto rural e respeitado por todos.
Advogado mais por ambição que por vocação, com um entendimento muito particular de suas obrigações, era exímio em manejar a lei em favor de seus próprios interesses. Atendia preferencialmente os grandes proprietários de terras, em suas querelas com os vizinhos e posseiros. Sabia como ninguém garantir a posse de uma propriedade irregular ou desalojar um pobre coitado sem título de posse.
Entre seus clientes, havia um porém, Nhô Bento, que pouco trabalho e rendimento lhe trazia. Fazendeiro e homem de negócios extremamente correto, só recorria ao advogado quando realmente necessitava de ajuda legal na elaboração de um contrato ou no desenrolar de suas transações comerciais.
A ocasião chegou para o Sinhô Doutor, quando Nhô Bento lhe pediu para localizar seu único parente restante. Era o filho de um primo que havia deixado aquelas paragens pela cidade grande e que agora deveria estar moço.
Nhô Bento começava a sentir a idade e queria se aproximar do parente para conhece-lo melhor e, quem sabe, passar-lhe a gestão de seus muitos negócios.
Sinhô Doutor se incumbiu da tarefa, mas, aproveitou para descobrir o ponto fraco do moço. Este era ganancioso ao extremo. Fácil foi induzi-lo a tomar a tutela da fortuna, naturalmente mediante régia remuneração para si mesmo.
Ele só não previa que a ganância do jovem levaria à tragédia. Percebeu rapidamente o que aconteceu quando Nhô Bento foi encontrado morto, estraçalhado por um mastim da fazenda.
Mediante nova remuneração ajeitou a situação, o incidente foi convenientemente registrado como infeliz acidente e qualquer suspeita abafada rapidamente. Foi ele inclusive que insistiu para que o mastim fosse imediatamente sacrificado, pois notou que ele era muito bem treinado e, caso outros percebessem isso também, poderiam surgir complicações para manter a versão contada.
Ganhou muito com este desonroso negócio, mas, se dele lembrava, era como uma nota de rodapé, de somenos importância, na brilhante carreira que imaginava para si mesmo. Perdeu o contato com o herdeiro de Nhô Bento, quando, algum tempo após herdar a fortuna, este deixou de ser um de seus clientes habituais. Sabia que ele havia se arrependido e, castigado pelo remorso, virará filantropo. Mas, Sinhô Doutor, jamais se arrependeu.
A morte o encontrou assim, muitos anos depois, sem remorsos e com a consciência adormecida. Se a morte o encontrou, não o fez o descanso eterno.
Atormentado por suas visões interiores, quase que demente, vagou muitos anos pelas paisagens sombrias dos planos espirituais mais inferiores. Andanças que um dia o levaram a cair extenuado e, num relance de lucidez, finalmente lembrar-se de que Deus existe.
Súplica ardente e sincera ao Altíssimo, imediatamente é respondida por latidos ao longe. Mais um pouco e prestimoso mastim se aproxima. Rapidamente o mastim afasta os vultos tenebrosos que tentavam arrastar Sinhô Doutor para longe dos socorristas.
Chegam então luminosos seres, guiados pelos latidos, que o recolhem em providencial maca. Ele percebe vagamente que o carregam por pequena distância e daí o colocam em um dos veículos de um longo comboio. O mastim, que o segue até o momento em que a maca é recolhida no veículo, estranhamente lhe parece familiar.
Começa então para o Sinhô Doutor o longo caminho de retorno ao cumprimento das Leis Divinas.
Muita Paz,
Carlos A. I. Bernardo